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Crédito: tubodeexplosão.net

Resenha Crítica

“Esta é uma terra ruim para deuses (...). Vocês todos já devem saber disso” (GAIMAN, 2016, p.508)

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Entre frases marcantes, essa talvez seja a mais representativa do livro Deuses Americanos, de Neil Gaiman, publicado pela primeira vez em 2001. A obra transporta os antigos deuses, de várias nacionalidades, para os Estados Unidos e os coloca em confronto com os novos deuses: a televisão, a internet, os aviões, os carros, o mercado e outros.

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A justificativa encontrada para haver deuses das mais variadas mitologias na América, com destaque especial para a Nórdica, com Wednesday (Odin) no comando, é que vários povos migraram para os Estados Unidos ao longo do tempo, e em suas viagens levavam também seus deuses e suas crenças.

A ideia de que os deuses migrariam para a América também foi trabalhada na série de livros Percy Jackson e os Olimpianos, de Rick Riordan e em toda sua mitologia construída posteriormente. Mas, diferente dos vizinhos olimpianos que moram no topo do Empire State Bulding e possuem uma legião de semideuses para lutar por seus interesses, os deuses de Gaiman se espalharam pelos Estados Unidos e chegam cada dia mais a decadência, correndo o risco de desaparecer.

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O livro é narrado em terceira pessoa, mas acompanha principalmente a trajetória de Shadow, um homem grande e calado, com poucas reações e sentimentos, que aceita a maior parte das coisas com passividade durante o livro todo, apesar de ter sido preso por agressão no passado. A história começa na prisão, nos últimos dias de pena de Shadow. Ao ser libertado, um pouco mais cedo por causa da morte de sua esposa, encontra Wednesday no avião e começa a trabalhar para ele, após descobrir que a esposa o traia com o melhor amigo e ele já não tem mais para quem voltar.

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E assim Shadow, e o leitor, entram no mundo mitológico. O enredo se baseia em Wednesday tentando convencer os deuses a lutarem e a história se move tendo em vista a aproximação da tempestade (a batalha final). Porém, o livro é mais que uma fantasia com toques de aventura, mitologias e uma esposa morta-viva andando pela terra com larvas saindo pelo corpo. O livro se propõe a explicar os Estados Unidos e a própria sociedade ocidental. Mas só aquela que tem acesso às tecnologias de informação e comunicação.

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 “ Pense em nós como uma espécie de símbolo. Somos o sonho que a humanidade cria para dar sentido às sombras na parede da caverna. Muito bem, agora vá em frente." (GAIMAN, 2016, p.454)

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Essa é uma história, portanto, sobre acreditar, sobre memória e tradição. Quando as pessoas mudaram para os Estados Unidos, seja em busca de uma vida melhor, seja acorrentado em situações degradantes para servir aos outros em regime de escravidão, elas levaram sua essência. E na essência do ser humano está a crença. A crença em deuses, em seres sobrenaturais que os ajudariam na nova terra.

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Com o passar do tempo, porém, as memórias e tradições são esquecidas, apagadas. A morte dessas culturas é personificada no livro em deuses decadentes, velhos, sem função, que vivem de migalhas das crenças que recebem.

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O ser humano, entretanto, precisa de algo para acreditar para continuar existindo. É da sua tradição acreditar em algo exterior, por isso acaba criando novos deuses.

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“ As pessoas acreditam, pensou. É isso que elas fazem: acreditam. E depois não assumem a responsabilidade por suas crenças. Conjuram coisas e não confiam nas próprias conjurações. As pessoas povoam a escuridão com fantasmas, deuses, elétrons, histórias. As pessoas imaginam e acreditam: e é essa crença, essa crença sólida, que faz tudo acontecer”. 

(GAIMAN, 2016, p.506-507)

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Antigamente essa crença era representada pelos mitos, as pessoas criavam mitologias e deuses para explicar o mundo ou para conseguir algum favor. Existiam os deuses da terra, da guerra, do amor, dos céus, da noite, do dia e vários outros. Cada mitologia possuía suas divindades, que tinham suas funções e personalidade específica, e para quem dedicavam sacrifícios. Quando o mito foi superado surgiram as religiões que nos deram outros deuses, anjos e demônios. Eles passaram a explicar da sua maneira o mundo, os fenômenos naturais e a vida do homem na terra, mas ainda com a necessidade da crença das pessoas.

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Na lógica evolutiva, a ciência nos libertaria. Mas, ao contrário, o progresso tecnológico nos deu novos deuses. Ainda estamos na caverna de Platão. Acreditamos nas sombras das paredes. Nós cultuamos a tecnologia de um modo que se transforma em nossos deuses, dependemos dela, acreditamos na sua ajuda, fazemos sacrifícios por ela, do nosso tempo, do nosso dinheiro (que também pode ser considerado um deus, por que não?), das nossas vontades. Somos devotos. Acreditamos.

Deuses americanos, ao tratar dessa lógica da tecnologia, traz uma discussão importante nos estudos da cibercultura. A ideia do embate entre tecnófobos e tecnófilos, que aqui, vamos pegar emprestados os termos de Francisco Rüdiger, quando denomina os favoráveis a tecnologia de Prometeicos e os contrários de Fáusticos, pela ironia de falar sobre deuses e mitologias, que provavelmente foram mortos na batalha. Mas que esperamos que estejam bem.

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Prometeu foi o responsável, na mitologia grega, por roubar o fogo de Zeus e entregar aos humanos. O fogo representava o conhecimento, a capacidade de pensar e raciocinar. A versão tecnófila enxerga a tecnologia como o fogo de Zeus. Um elemento emancipador, benéfico para a sociedade e qualquer tentativa de parar a tecnologia é inútil.

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“[...] A tecnologia merece, segundo eles, ser vista como um fator de progresso, uma força de caráter positivo, que nos promete o melhor mundo possível. Os obstáculos que ela encontra não são menos solucionáveis que seus próprios efeitos perversos, visto que ambos serão resolvidos com a pesquisa e o desenvolvimento de novos artefatos tecnológicos”. (RUDIGER, 2011, p.51)

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Fausto pertence à tradição alemã e ficou famoso pela obra-prima de Goethe. O mito surgiu na transição da Idade Média para o Renascimento, portanto o desejo pelo conhecimento, expresso em algumas versões da história pelo pacto com Mefistófeles, é colocado como contrário a Deus. Na lógica de Fernando Pessoa, em sua adaptação da história de Fausto, o mito representa a disputa entre a inteligência e a vida, em que a inteligência é sempre vencida. Desse modo, para os tecnófobos, a tecnologia e a vida são incompatíveis. A tecnologia destrói as culturas e as interações nessa visão.

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“A máquina pouco a pouco foi passando a ser vista- às vezes inclusive miticamente- como uma armadilha montada para si mesma pela a humanidade progressista, um elemento nocivo que não apenas tende a agredir sua vida como, no limite, ameaça à sua sobrevivência” (RUDIGER, 2011, p.52)

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No livro o embate acontece entre essas duas vertentes. Os deuses novos representam os tecnófilos, que acreditam que os deuses antigos devem morrer e que a tecnologia é o presente e o futuro. E os deuses antigos que veem os novos (a tecnologia) como uma ameaça, que causaria a destruição de sua existência e sua cultura.

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Apesar de o final conter alguns plot twists e você se arrepender de ter confiado tanto em alguns deuses, o final é ameno. A batalha não termina e não há vencedores. Nenhuma das linhas vence. O que não o coloca diretamente em uma visão conciliadora, porque o motivo da guerra não ter ido adiante envolve trapaça e manipulação, não a constatação de que pode haver uma existência pacífica.

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Por a obra ser narrada do ponto de vista dos deuses antigos, temos a sensação de que o autor se posiciona mais ao lado dos tecnófobos, pois coloca os deuses da internet e da televisão como os vilões e faz com que o leitor torça para a sobrevivência dos deuses antigos. Essa visão será tratada abaixo, retratando o modo como essa aversão a tecnologia se manifesta.

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Mas o que acontecerá depois? Apesar da chegada da primavera a América não é uma terra boa para os deuses.

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Os deuses velhos irão morrer?

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Eles deveriam morrer?

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E os novos deuses? Serão substituídos?

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Quando serão trocados?

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“Os velhos deuses são ignorados. Os novos são adotados tão rápido quanto são descartados e substituídos pela próxima novidade. Ou vocês foram esquecidos, ou têm medo de ficar obsoletos, ou talvez só estejam cansados de existir ao sabor do capricho humano” (GAIMAN, 2016, p.508)

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VISÃO TECNÓFOBA- A CRÍTICA À MÍDIA E A TECNOLOGIA

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A “tecnofobia” (aversão às novas tecnologias e aos meios de comunicação) é facilmente observada no romance de Gaiman. O enredo principal da história se passa por uma guerra entre os novos deuses (criados a partir da cultura norte-americana) e os deuses antigos, que sobrevivem precariamente graças aos poucos fiéis que ainda restam. Ou seja, para a história, os deuses não são criados a partir da ancestralidade e divindade, mas sim pela paixão e devoção dos seres humanos. As divindades só existem a partir do momento que acreditamos nelas, e com a mídia e as tecnologias não é nada diferente.

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 A primeira reflexão sobre as novas tecnologias se dá pelo deus ‘Technical Boy’, que sequestra Shadow em uma tentativa de arruinar os planos de Odin para a guerra. É importante ressaltar que as funcionalidades deste Deus mudaram muito ao longo dos anos, e são bastante diferentes no livro e na série.

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A primeira versão apresentada no livro descreve Technical boy como um adolescente gordo, com muitas espinhas, cheio de referências a vídeo games. Ou seja, o típico garoto norte-americano viciado em jogos eletrônicos. A característica que torna esse deus tão poderoso é justamente a adoração aos jogos e ao mundo digital, às tecnologias. Um fator que poderia ter influenciado o autor de Deuses Americanos a criar este deus é o fato de o livro ter sido escrito em 2001, ou seja, quando a internet havia atingido o seu ápice (juntamente com os jogos digitais). Esta geração de adolescentes foi profundamente marcada por estas tecnologias de imersão, tornando-as um objeto de adoração. As tecnologias aqui referenciadas não possuem um caráter móvel, ou seja, de conexão contínua. São representadas pelo videogame, pelo computador de mesa e outras ferramentas tecnológicas fixas. Santaella, sobre as tecnologias de acesso, afirma que:

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“A história da Evolução do computador é tão reticular, quer dizer, alinear quanto as linguagens hipermidiáticas a que hoje ela nos dá acesso. Segundo Briggs e Burke (2004, p.288), é uma história com facetas diversas, envolvendo projeto, memória, linguagem circuito lógico, programas e alguns dispositivos entre os quais se destacam os que permitiram a convergência dos computadores com as telecomunicações: antes de tudo, aquela que foi a grande revolução em meio à alinearidade evolutiva, a do computador pessoal, então, o modem, que permite a transmissão de dados por linhas telefônicas, o mouse, os softwares, representantes do lado criativo da tecnologia.” (SANTAELLA, 2008, p. 31)

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Portanto, o deus da tecnologia representado nos anos 2000 tem essa característica nerd, da tecnologia do acesso, que fascinou muito os jovens da época, e, por conseguinte, formou-se um deus bastante poderoso.

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Créditos: Angela Shen

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Em 2015, quando foi anunciada uma adaptação do livro para as telas, um outro deus da tecnologia surgiu: ainda adolescente, mas com tecnologias de acesso contínuo. Nesta etapa, o Deus da tecnologia assume uma forma totalmente diferente. É importante notar que os novos deuses americanos assumem as características dos seus adoradores, e isso não acontece com os deuses antigos. Technical boy é rude, não toma cuidado com as palavras e acha que tudo pode ser resolvido com a tecnologia, mas, no final, se esconde por trás da tela do computador. Essa característica do novo adorador da tecnologia (novamente se espelhando na imagem do garoto revoltado norte-americano) é muito bem abordado por Santaella, no livro Comunicação Ubíqua.

 

“Característicos das redes é que grupos se formam e se mantém coesos ou não, uma vez que o tempo e o espaço são dinâmicos, efêmeros e fragmentados entre as perspectivas que cada um pode gerar ou absorver nesses Âmbitos de conveniência (Viana, ibid, p. 122). Além de favorecer a circulação, as mídias sociais abrem espaço para a criação de ambientes de convivência instantânea entre as pessoas. Instauraram, assim, uma cultura participativa, a qual cada um conta e colabora, portanto, uma cultura integrativa, assimilativa, cultura da convivência que evolui de acordo com as exigências impostas pelos usos dos participantes. É uma cultura em que seus membros creem que suas contribuições importam e desenvolvem determinado grau de conexão social com o outro, de modo que tem grande relevo aquilo que os demais pensam ou se supõe que pensam sobre o que cada um cria, por mais insignificante que seja.” (SANTAELLA, 2013, p. 29).

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A nova versão do Deus é muito mais atualizada e se assemelha aos influenciadores digitais de nossa atualidade (que precisam estar a todo momento imersos na tecnologia para interação com o público e afins). Este aspecto da obra de Gaiman é muito interessante, a representação do personagem da tecnologia segue uma linha:  a da evolução tecnológica. Essa diferença entre os personagens do livro e da série é temporal, entretanto, ainda assim faz uma crítica sucinta à tecnologia, aos aplicativos e à internet, quando estes passam a ser objeto de devoção.

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Crédito: Starz/Reprodução

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Outra deusa muito importante para o enredo e entendimento da crítica do autor à modernidade é a deusa Media. Ela é caracterizada como uma mulher sedutora, que possui ferramentas poderosas de alienação das pessoas. A forma como Gaiman apresenta esta característica de sedução da mídia para atender os interesses da indústria é muito explorada no livro, especialmente em uma cena que aparece a novela Love Lucy, uma das preferidas de Shadow. Após três anos na prisão, é natural que o personagem anseie assistir novamente alguns episódios. Na televisão do quarto de hotel em que ele está hospedado aparece a mídia atuando como deusa. Ela o hipnotiza e oferece a visão do peito da atriz como forma de chamar atenção. Dessa forma, o autor mostra como as mídias, principalmente a televisão, podem ter esse poder hipnotizante, nos levando a tomar decisões a partir de sua influência.

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Isso pode ser exemplificado por uma citação de Castells, que para compreender as mídias digitais sintetiza as teorias sobre a televisão analógica.Uma delas, que defende o poder de hipnose da mídia, explica que: “(...) a modalidade de comunicação da televisão é um meio fundamentalmente novo caracterizado pela sua sedução, estimulação sensorial da realidade e fácil comunicabilidade, na linha do modelo do menor esforço psicológico” (CASTELLS, 2012, p.418).

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Na série, a caracterização da personagem é sedutora, doce e até paciente. Porém, esta personalidade é apenas fachada. Shadow e o restante dos personagens que lutam a favor dos deuses antigos sabem o real caráter manipulatório da televisão. Por isso mesmo é bastante adorada entre os americanos. Esta adoração remete ao conceito de Indústria Cultural de Adorno e Horkheimer.

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Uma frase da deusa Media que simboliza o poder da televisão é “A tela é o altar”. É possível fazer inúmeras considerações referentes a esta frase, pois é inegável o quanto a mídia televisa nos cerca. O ato de assistir televisão não é mais uma troca de informações, é algo cultural. A televisão ocupa um espaço central na grande maioria das casas americanas, e ela pode ficar ligada até mesmo quando os receptores da mensagem não prestam atenção. Dessa forma, o seu poder aumenta.

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REFERÊNCIAS

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RüDIGER, Francisco. As teorias da cibercultura: perspectivas, questões e autores. Porto Alegre: Sulina, 2011. pp.51-74

GAIMAN, Neil. Deuses Americanos: edição preferida do autor. Rio de Janeiro: Intrínseca, 2016. 576 p.

SANTAELLA, Lucia. O DNA das redes sociais digitais. In: BARBOSA, Marialva; MORAIS, Osvaldo J. de. Comunicação em tempo de redes sociais: afetos, emoções, subjetividades. São Paulo

CASTELLS, M. A cultura da virtualidade real: a integração da comunicação eletrônica, o fim da audiência de massa e o surgimento das redes interativas. In: _____. A sociedade em rede: Era da informação, v. 1. São Paulo: Paz e Terra, 2012 

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